É famosa entre linguistas, de inspiração Chosmkyana
principalmente, nomeadamente Steven Pinker, a ideia de que a língua se
desenvolveu evolutivamente a partir de outras funções já desempenhadas pelo
cérebro humano.
Parece-me uma teoria bastante pertinente e, a um certo ponto,
pode-se demonstrar que certas áreas do cérebro de fato estão relacionadas a
certos aspectos da linguagem.
Por exemplo, diz Pinker, as ideias expressas pelas preposições
teriam sua origem, com vista semelhança abstrata, em áreas do cérebro
responsáveis em processar o movimento e a localização.
Surpreende-me muito (ou não) que linguistas que sustentam essas
proposições dêem um salto lógico tão grande a ponto de chegar à conclusão de
que o certo e errado da língua são muito relativos, ou inexistentes, que usem
esses argumentos para condenar quem defende um cultivo específico da língua e
não o laissez-faire linguístico quase total.
Ainda a separação de cada língua específica como ente abstrato dependente
porém diferente das suas estruturas subjacentes não se explica por esses
argumentos evolucionistas. Em que momento exatamente foram atribuídas
significantes aos significados? Em algum momento isso foi feito, e feito usando
o intelecto, o pensamento abstrato ativo e não simplesmente uma estrutura
cerebral subjacente, caso contrário a situação em que um ser humano não sabe
uma palavra em sua própria língua nativa, ou no caso em que a língua ainda não
possua uma palavra ou meio de expressão para algo seriam situações
inexistentes.
Ainda nesse caminho, tenta-se desprovar a influência do uso
consciente e cuidadoso da língua em sua evolução. É como se ignorando-se
totalmente uma arte ou uma técnica se produzissem ferramentas e resultados tão
bons quanto ao cultivá-las com empenho, cuidado e dedicação contínuos.
O que me motivou a escrever isso, porém, foi o funcionamento
radicalmente diferente que notei entre pessoas habituadas a falar várias
línguas e estudar a gramática, especialmente sua percepção dos morfemas. Estas
encontram facilmente o radical de uma palavra e são capazes de gerar
neologismos ou de reconhecer palavras que dele derivam. Já a maioria dos
brasileiros, acostumados a um uso instrumental da língua beirando a
incapacidade de comunicação, não consegue conceber categorias abstratas como os
morfemas. A consequência disso é que não conseguem identificar radicais e seus
derivados. Ao invés disso, guiam-se somente pela afinidade sonora ou grafêmica
entre as palavras. Às vezes com resultados cômicos, não conseguem absolutamente
diferenciar de forma analítica dois parônimos e são incapazes de separar os
morfemas que compõem uma palavra, assim como são incapazes de entender
diferenças e semelhanças abstratas entre um morfema e outro, tendo sempre que
recorrer ao significado, sem conseguir manusear mentalmente o significante.
Este tipo de pensamento, creio que é o natural ao ser humano, deriva das suas capacidades biológicas. É
com essa lógica que surgem as línguas. Sabe-se que a interpretação de sons e
letras funciona para a língua da mesma forma que para funcionalidades não
relacionadas. Por exemplo, um ser humano é capaz de identificar a origem de um
som vindo de, por exemplo, um animal qualquer, como sendo dele mesmo, ainda que
mude a frequência, o tom, o timbre, etc. Assim, também é capaz de identificar
palavras proferidas por pessoas com vozes radicalmente diferentes, e mesmo de
entender palavras com sons trocados por fonemas de qualidades diferentes.
Também se sabe que o ser humano reconhece as letras da mesma forma que
reconhece rostos humanos. Portanto, da mesma forma que consegue reconhecer um
amigo ou familiar com alterações no semblante, também consegue ler letras em
fontes diferentes.
Quando uma língua surge, é impossível que o faça através de um
processo racional, pois não existe raciocínio linguístico sem o uso da própria
língua.
Portanto, o surgimento dos primeiros significantes, assim como da
gramática, baseia-se nos sentidos mesmos, nas semelhanças sonoras (daí as
descobertas recentes da sinestesia inrínseca nos sons das palavras, que
contrariam em parte a ideia Saussuriana de significante arbitrário e joga no
lixo o valor da maioria das línguas artificiais), e nas analogias mentais.
É sabido que línguas mais "primitivas" têm uma gramática
extremamente complicada (ao contrário do que diz o senso comum). Isso se passa
porque a própria análise gramatical é fundamentada em uma lógica extremamente
diferente da usada nessas línguas.
Uma língua, imagino portanto, desenvolve-se primeiro
fundamentando-se em um instinto humano para a linguagem. Tal língua serve para
todas as necessidades humanas básicas, como avisar sobre predadores, caçar,
lutar, disputas verbais básicas, etc. o que, porém, não deve ser confundido com
os grunhidos de animais que são puramente pragmáticos. Essa língua já é uma
língua normal, completamente desenvolvida do ponto de vista linguístico, mas
não do ponto de vista humano, da capacidade de expressar ideias objetivas sobre
a própria língua.
A partir do momento em que existem já os significantes e
funcionalidades para as situações mais pragmáticas, pode-se começar a usá-los
para funções abstratas e é aí que a língua vai criando a capacidade de
"falar sobre si mesma"e desenvolver-se. Um indivíduo já em posse
dessa língua é capaz de encontrar nela analogias estruturais e abstratas. Já
pode modificá-la de forma consciente para que consiga expressar-se melhor. Já
pode condenar determinado uso da língua, pois o julga ineficiente e confuso.
Enfim, pode já cultivar a língua.
A partir daí já não estamos falando mais de uma mera consequência
biológica. Mas de uma criação abstrata de um invidívuo ou de um grupo de
indivíduos, que depende de sua vontade, não de um mero acidente, pode jamais
acontecer ou acontecer de formas totalmente divergentes. Enfim, é parte da
cultura, da razão, não da biologia.
Não é causada, portanto, pela biologia. Esta é o seu fundamento,
não sua causa. Mas parece cada vez mais comum a confusão entre os conceitos,
cada vez mais comum nas ciências. E não haveria de ser diferente na
linguística.